Traffic
De Steven Soderbergh MUITO RAPIDINHO
Ousado, muito ousado. Quase pretensioso. Mas é uma nobre ousadia, que, aparentemente, está de acordo com a teoria mais bacana de Edgar Morin: o pensamento complexo. Minha proposta para esta coluna é confrontar o filme e esta tentativa de compreender o mundo contemporâneo. Antes disso, porém, é bom dizer que Traffic é o melhor filme de Soderbergh (logo depois de sexo, mentiras e vídeotape, é claro): câmara ágil, sem provocar tontura; direção de atores muito segura; temática, a um só tempo, muito séria e divertida; realismo no ponto exato. Claro que tudo isso só funcionaria tendo por base um bom e sólido roteiro. Mas será que ele é tão sólido assim?
AGORA COM MAIS CALMA
"Na ânsia de controlar o pensamento, o homem separou uns dos outros os diferentes aspectos da realidade, isolou os objetos ou fenômenos de seu ambiente; tornou-se incapaz de integrar um conhecimento em seu contexto e no sistema global que lhe dá sentido. O homem acreditou que o progresso e o desenvolvimento eram as soluções para tudo, e esta simplificação teve um alto custo para o planeta. Todo conhecimento da realidade não animado e controlado pelo paradigma de complexidade destina-se a ser mutilado e, nesse sentido, a carecer de realismo."
É o que diz Morin em Terra-Pátria (Porto Alegre, Editora Sulina, 1995). E até parece que os roteiristas Simon Moore e Stephen Gaghan, mais Soderbergh, leram Morin e construíram o filme pensando na complexidade. Traffic tenta ver o problema das drogas sem isolar os diferentes aspectos que o compõem: o tráfico, o consumo, o tratamento, a ação da polícia, a ação dos governos, a corrupção, etc. Traffic tenta integrar a questão no contexto global, tenta amarrar todas as pontas, tenta não cair nas simplificações, tenta não arrumar culpados de ocasião, tenta manter o único realismo possível: aquele que admite um mundo assustador, complicado, contraditório, com alto grau de incerteza, que exige, em sua representação (e, depois, em sua interpretação) uma esforço que ultrapassa os limites da ciência tradicional, cartesiana e tão cheia de soluções.Morin costuma falar em sete grandes princípios do pensamento complexo. Vamos dar uma olhada em como Traffic lida com eles.
1) princípio sistêmico ou organizacional – o todo é mais que a soma das partes. Ponto para Traffic. O "todo" que emerge das várias histórias (a do policial mexicano, a do juiz com a filha drogada e a da esposa do traficante americano preso) é, com certeza, maior que a soma das partes. Já foram feitos filmes melhores sobre cada um dos sub-temas, mas nenhum que conseguisse relacionar os sub-temas e que nos fizesse refletir sobre os jogos de poder que os fazem interagir. 2) princípio hologramático - em cada uma das partes, está o todo. Hummm... Aqui a coisa se complica. Há uma evidente preocupação do roteiro em construir pontes entre as histórias, isto é, fazer os enredos se cruzarem, com uma certa dose de obviedade. Mas não vi muitos reflexos indiretos, subjetivos, entre os personagens das histórias. Dentro de cada história, sim: por exemplo, o juiz, em sua vida pública, é atropelado pela sua vida doméstica. Mas esse mesmo tipo de ligação poderia existir entre os núcleos narrativos. 3) princípio do anel retroativo – auto-regulação (feed-back), em vez do esquema tradicional de causa-conseqüência. Senti, em Traffic, uma vontade muito grande de evitar o determinismo.
Duvidamos o filme inteiro do caráter do personagem de Benício del Toro: o cara é mesmo honesto, ou está fingindo? E ele só se define, lá no final, por uma sucessão de acontecimentos, alguns inesperados, outros nem tanto. Ou seja, ele resolve ser bonzinho não porque descobre como os maus são maus. Ele experimenta os dois lados, é igualmente atraído por eles, e toma a sua decisão baseado em tudo o que sentiu. 4) princípio do anel recursivo – os seres humanos produzem a sociedade, mas cada ser é resultado da sociedade. Ponto para Traffic. Sim, os personagens são, ao mesmo tempo, representações de setores da sociedade e construtores dessa sociedade. Não há, pelo menos entre os personagens principais, aqueles estereótipos que estamos sempre encontrando nos filmes sobre drogas. Há, é claro, a necessidade de sintetizar, ou o filme teria 5 horas de duração. 5) princípio da auto-eco-organização – a autonomia da humanidade depende do meio-ambiente. Traffic, neste ponto, esquece uma das pontas do sistema internacional de drogas: o plantio. O que são as grandes plantações de coca na Colômbia? Um evidente desequilíbrio ecológico, provocado (olha a simplificação determinista aí... desculpem) por um desequilíbrio econômico. 6) princípio dialógico – possibilidade de unir idéias antagônicas, como ordem/desordem, individualidade/sociedade. Mais um ponto para Traffic. E esta talvez seja sua principal qualidade: a coragem de juntar política e amor, vida pública e privada, lógica e incerteza. Tá tudo lá. Basta saber olhar. 7) princípio da reintrodução – todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um cérebro numa certa cultura e num determinado tempo. E é este princípio que absolve Soderbergh de um certo viés americanólico em Traffic. A cidade do México é um caos alaranjado, enquanto San Diego é bem bonitinha. O general mexicano é um corrupto clássico e previsível, enquanto o juiz americano é um homem modernamente angustiado. As mulheres mexicanas são grandes sofredoras, enquanto a americana é decidida e corajosa. Soderbergh viu o problema das drogas de forma complexa, mas sua obra deve ser compreendida dentro da cultura (de Hollywood) que a gerou e dentro do momento histórico (conservador) que passamos.
"Há necessidade de um pensamento que ligue o que está separado e compartimentado, que respeite o diverso ao mesmo tempo que reconhece o uno, que tente discernir as interdependências. (...) Um pensamento que reconheça seu inacabamento e negocie com a incerteza, sobretudo na ação, pois só há ação no incerto."
É o que diz Morin. E é o que disse, pelo menos parcialmente, Soderbergh. Num momento em que quase todos os filmes fazem um esforço tremendo para não dizer absolutamente nada, Traffic é uma exceção, que procura evitar as fórmulas prontas, as simplificações, as banalidades, na busca de uma saudável incerteza.
Traffic (EUA, 2000). De Steven Soderbergh
Dê sua opinião ou cale-se para sempre
Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para a Terra Networks (A Gente Ainda Nem Começou e Fausto). Em 2000, lançou seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.
Extraído: http://www.terra.com.br/cinema/opiniao/traffic1.htm .
Nenhum comentário:
Postar um comentário