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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

COPIANDO E REPASSANDO

"Esta secção, tem como objetivo socializar através da leitura dos posts uma obra literária de vulto. Todo dia será postado um texto do livro a ser abordado. Quem tiver sugestões e queira colaborar, envie nome das obras ou as mesmas para este exercício de compartilhar arquivos e conhecidos. Endereço Eletrônico: revupoeta@yahoo.com.br ou revupoeta@gmail.com “.
A OBRA
Vamos iniciar com a coletânea Mulheres, que reuni textos do escritor Uruguaio Eduardo Galeano. A obra compõe escritos de vários livros do autor, como a trilogia Memória do Fogo, O livro dos Abraços, Vagamundo, Palavras Andantes, Dias e Noites de Amor e Guerra, entre outros. Galeano autor do best seller As veias abertas da América Latina, faz uma homenagem carinhosa a mulheres ilustres e anônimas que ajudaram a construir a História das Américas.
O TEXTO
A MOÇA DA CICATRIZ NO QUEIXO
7
Em plena noite fomos despertados por fortes batidas na porta e por gritos. Por pouco a porta não veio abaixo.
Eu e Flávia saímos correndo para casa do Maneta Justino. Peguei o que pude e voamos para lá. Anos atrás, um tubarão tigre havia arrancado o braço de Justino. O tubarão tinha dado a volta quando Justino tentava tira-lo da rede. Eu conhecia Justino muito pouco, mas disso eu sabia. No casebre, o lampião a querosene cambaleou.
A mulher do sem braço gritava com as pernas abertas. As coxas estavam inchadas e roxas. Na pele esticada via-se uma seiva de minúsculas veias.
Pedia a Flávia para ferver uma panela de água. Mandei Justino, que estava muito nervoso e tropeçando em tudo, esperar lá fora. Um cachorro escondeu-se debaixo da cama e expulsei-o a pontapés.
Com alma e vida debrucei-me sobre o ventre da mulher. Ela uivava como um animal, gemia e xingava- nâo aguento mais, esta doendo, caralho, eu morro-, fervendo de suor, e a cabeçinha vinha aparecendo entre as pernas mas não saía, não saía nunca, e eu fazia força com o corpo todo e aí a mulher deu um soco num travessão de madeira e o teto quase veio abaixo, e deu um longo grito esganiçado.
Flávia estava ao meu lado. Fiquei paralisado. A pequenina tinha nascido com o cordão dando-lhe duas voltas no pescoço. O rostinho estava roxo, inchado, sem traços, e estava toda oleosa e coberta de sangue e de uma merda verde e tinha dor estampada no rosto. Não se viam as feições mas se via a dor, e creio que pensei: pobrezinha, já tão cedo.
Eu tremia da cabeça aos pés. Quis segura-la. faltavam-me mãos. Escorregou. Foi Flávia quem desenroscou o cordão. Eu atinei, não sei como, dar dois nós bem fortes com um fio qualquer, e com uma gilete cortei o cordão de uma vez. E esperei.
Flávia segurava pelos pés e a mantinha suspensa no ar. Dei-lhe uma palmadinha nas costas. Os segundos voavam. Nada. E esperamos.
Creio que Justino estava na porta, de joelhos, rezando. A mulher gemia, queixando-se com um fio de voz. Estava longe. E nós esperando, com a menininha de cabeça para baixo, e nada. Tornei a dar-lhe uma palmada nas costas. Aquele cheiro imundo e adocicado revirava o meu estômago.
Então rapidamente, Flávia agarrou-a pela cabeça, levou-a á boca e a beijou violentamente. Aspirou e cuspiu e tornou a aspirar e cuspir crostas e escarros e baba branca. E finalmente a pequenina chorou. Tinha nascido. Estava viva.
Ela me entregou a menina e eu a lavei. As pessoas foram entrando. Flávia e eu saímos. Estavamos exaustos e atordoados. Fomos sentar na areia, junto ao mar, e sem dizer nada, nos perguntávamos: "Como foi? Como foi?". Eu confessei: - Nunca havia presenciado. Não sabia como era. Para mim foi a primeira vez. E ela disse: - Nem eu.
Apoiou a cabeça no meu peito. Senti a força de seus dedos agharrando-se nas minhas costas. Advinhei que tinha lágrimas presas nos olhos.
Depois perguntou ou fez a pergunta para si mesma: - Como será ter um filho? Um filho próprio, da gente? E disse: - Eu nunca vou ter.
E depois, um marinheiro chegou perto, mandado por Justino, perguntando a Flávia qual era seu nome. Precisavam do nome para o batismo. - Mariana- responde Flávia. Fiquei surpreso. Não disse nada.
O marinheiro deixou-nos uma garrafa de grapa. Bebi no gargalo. Flávia também. - Sempre quis me chamar assim- disse-me
E eu me lembrei que esse era o nome que constava no passaporte que estava preparando- lenta, lentamente- para que ela fosse embora.

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