"Esta secção, tem como objetivo socializar através da leitura dos posts uma obra literária de vulto. Todo dia será postado um texto do livro a ser abordado. Quem tiver sugestões e queira colaborar, envie nome das obras ou as mesmas para este exercício de compartilhar arquivos e conhecidos. Endereço Eletrônico: revupoeta@yahoo.com.br ou revupoeta@gmail.com “.
A OBRA
Vamos iniciar com a coletânea Mulheres, que reuni textos do escritor Uruguaio Eduardo Galeano. A obra compõe escritos de vários livros do autor, como a trilogia Memória do Fogo, O livro dos Abraços, Vagamundo, Palavras Andantes, Dias e Noites de Amor e Guerra, entre outros. Galeano autor do best seller As veias abertas da América Latina, faz uma homenagem carinhosa a mulheres ilustres e anônimas que ajudaram a construir a História das Américas.
O TEXTO
A MOÇA DA CICATRIZ NO QUEIXO
2
Nessa noite, pela janela aberta de minha casa, contemplamos juntos as faíscas dos relâmpagos iluminando os casebres do vilarejo. Juntos, esperamos os trovões e o desaguar da chuva.
- Você sabe cozinhar?
- Sei alguma coisa. Batatas, peixes...
Eu passava as noites debruçado, sozinho, na janela, acariciando a garrafa de genebra e esperando pelo sono ou pelos doentes. Meu consultório, de chão de terra e lampião á querosene, consistia em uma cama turca e um estetoscópio, algunas seringas, vendas, agulhas, linhas para dar pontos em cortes e as amostras grátis de remédios que Carrizo, de vez em quando, me mandava de Buenos Aires. Com isso, e com dois anos de Faculdade, eu me arranjava para costurar homens e lutar contra as febres. Nas minhas noites solitárias sem querer desejava uma desgraça para não me sentir totalmente inútil.
Rádio, eu não escutava, pois no litoral corria o perigo ou a tentação de sintonizar alguma emissora do meu país.
- Não vi nenhuma mulher neste vilarejo. Tambem isto você deixou para trás?.
Eu dormia sozinho na minha cama de faquir. Os elásticos do colchão já estavam á vista e as pontas das molas em espiral apareciam perigosamente. Tinha que dormir todo encolhido para não ser espetado por elas.
- Sim- respondi-lhe, com ar zombeteiro. - Para mim acabou-se a clandestinidade. Nem com mulheres casadas tenho encontros clandestinos.
Ficamos calados.
Fumei um cigarro, dois.
Por fim, perguntei-lhe para que tinha vindo. Respondeu-me que precisava de um passaporte.
- Você ainda faz passaportes?
- Pensa voltar?
Disse-lhe que, tal como estavam as coisas, voltar seria uma estupidez. Que não existia o heroísmo inútil. Que...
- Isso é coisa minha- disse ela- Perguntei se você ainda faz passaportes.
- Se você precisar.
- Quanto tempo leva?
- Para os outros- disse-lhe-, um dia. Para você, uma semana.
Riu.
Nessa noite cozinhei com vontade pela primeira vez. Fiz para Flávia uma corvina na brasa. Ela preparou um molho com o pouco que havia.
Fora, chovia a cântaros.
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