"Esta secção, tem como objetivo socializar através da leitura dos posts uma obra literária de vulto. Todo dia será postado um texto do livro a ser abordado. Quem tiver sugestões e queira colaborar, envie nome das obras ou as mesmas para este exercício de compartilhar arquivos e conhecidos. Endereço Eletrônico: revupoeta@yahoo.com.br ou revupoeta@gmail.com “.
A OBRA
Vamos iniciar com a coletânea Mulheres, que reuni textos do escritor Uruguaio Eduardo Galeano. A obra compõe escritos de vários livros do autor, como a trilogia Memória do Fogo, O livro dos Abraços, Vagamundo, Palavras Andantes, Dias e Noites de Amor e Guerra, entre outros. Galeano autor do best seller As veias abertas da América Latina, faz uma homenagem carinhosa a mulheres ilustres e anônimas que ajudaram a construir a História das Américas.
O TEXTO
A MOÇA DA CICATRIZ NO QUEIXO
6
Ìamos visitar o Capitão.
O Capitão, em terra firme, estava sempre de passagem.
Sua verdadeira residência era o mar, o barco Foragido, que nos dias bons se perdia longe do horizonte.
Ele tinha armado uma barraca entre os carvalhos, para os maus dias, e ali ficava a vaguear na sombra, cercado por seus magros cachorros, pelas galinhas e porcos criados ao deus-dará.
O Capitão tinha músculos até nas sobrancelhas.
Nunca tinha escutado uma previsão do tempo, nem consultado uma carta de navegação, mas conhecia como ninguem aquele mar.
As vezes, ao entardecer, eu ia á praia para vê-lo chegar.
Via-o em pé na proa, com as pernas abertas e as mãos na cintura, aproximando-se da costa, e advinhava sua voz dando ordens ao timoneiro. O Capitão subia na crista da onda brava, montava-a quando queria, cavalgava sobre ela, a domava; deixava-se levar tranquilamente, deslizando suavemente até a costa.
O Capitão sabia executar o seu ofício, fazia-o bem, amava o que fazia e o que já havia feito. Eu gostava de ouvi-lo.
Se um norte você perdeu, pelo sul ele se escondeu.
O Capitão me ensinou a pressentir as mudanças do vento. Ensinou-me tambem por que os tubarões, que não sabem nadar para trás e só tem olfato para o sangue, se enrolam nas redes, e como as corvinas negras comem mexilhões no fundo do mar, boca abaixo, cuspindo as cascas, e como as baleias fazem amor nos gelados mares do sul e sobem a superfície com as caudas enroscadas.
O Capitão tinha andado pelo mundo. Escuta-lo era como fazer uma longa viagem de trás para diante, do ponto de chegada ao ponto de partida, e pelo caminho apareciam o mistério e a loucura e a alegria do mar e alguma vez, rara vez, tambem a dor calada. As Histórias mais antigas eram as mais divertidas e eu ficava imaginando que nos anos de sua juventude, antes das feridas das quais pouco falava, o Capitão tinha sabido ser feliz até nos velórios.
Enquanto falavamos, chegavam até a barraca do Capitão o barulho ininterrupto de uma serra e os mugidos das vacas na mansidão; chegavam tambem as marteladas do sapateiro que amaciava couros na forma de ferro apoiada em seus joelhos.
Falava-me de minha cidade, que conhecia bem.
Isto é, conhecia o porto e a baía, mas principalmente as ruelas da parte baixa da cidade e os bares. Perguntava-me sobre certos botequins e mercadinhos e eu lhe dizia que haviam desaparecido e ele se calava e cuspia tabaco.
- Eu não acredito nos tempos de hoje- dizia o Capitão.
Uma vez ele me disse:
- Quando as paredes duram menos que os homens , as coisas não andam bem. No seu País, as coisas não andam bem.
Tambem falava do passado daquele povoado de pescadores, que tinha conhecido suas épocas de glória quando o fígado do tubarão valia seu peso em ouro e os marinheiros passavam noites de temporal com uma puta Francesa e cada joelho e algum anão abanando e os violeiros cantando versos de amor.
Do pique da proa, olhou Flávia com desconfiança.
Franziu a testa e lhe falou baixinho, para que eu não ouvisse:
- Quando este homem chegou aqui- apontando-me e mentindo para Flávia-, matou com as próprias mãos o cavalo que o trouxe. Matou-o com um tiro.
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