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segunda-feira, 8 de março de 2010

COPIANDO E REPASSANDO

"Esta secção, tem como objetivo socializar através da leitura dos posts uma obra literária de vulto. Todo dia será postado um texto do livro a ser abordado. Quem tiver sugestões e queira colaborar, envie nome das obras ou as mesmas para este exercício de compartilhar arquivos e conhecidos. Endereço Eletrônico: revupoeta@yahoo.com.br ou revupoeta@gmail.com “.
A OBRA
Vamos iniciar com a coletânea Mulheres, que reuni textos do escritor Uruguaio Eduardo Galeano. A obra compõe escritos de vários livros do autor, como a trilogia Memória do Fogo, O livro dos Abraços, Vagamundo, Palavras Andantes, Dias e Noites de Amor e Guerra, entre outros. Galeano autor do best seller As veias abertas da América Latina, faz uma homenagem carinhosa a mulheres ilustres e anônimas que ajudaram a construir a História das Américas.
TEXTO
HISTÓRIA DA INTRUSA E no sétimo dia, Deus descansou. E recuperou a plenitude de sua energia. E no oitavo dia, a criou. (Gênesis, 2.1.) Você veio pelo rio, na sua noite de boda. A cidade inteira estava no cais, de boca aberta, quando você chegou da escuridão, de pé sobre a espuma. As salpicaduras da água haviam a túnica branca grudado em seu corpo, e um diadema de vaga-lumes vivos iluminava seu rosto. Lucho Cavalcante havia trocado seis vacas, que eram tudo o que ele tinha, por você, para que a sua formosura curasse aquele corpo atacado pela solidão e humilhado pelos anos. A noite foi festa. E ao amanhecer, debaixo de uma chuva de arroz, a balsa deu quatro voltas no rio e vocês se afastaram, perseguidos pelos adeuses das violas e das maracas. Na noite seguinte, a balsa retornou. Você vinha, de pé. Lucho Cavalcante vinha deitado, naquele comprimento todo. Lucho havia morrido sem tocar em você, enquanto a túnica branca deslizava lentamente ao longo de seu corpo e caía, feito um novelo, a seus pés. Olhando você, o peito de Lucho havia explodido. Foi velado todo coberto, porque estava roxo e com a língua de fora. E durante o velório, os dois irmãos de Lucho se esfaquearam entre si, disputando a herança, você, fêmea solitária, invicta e viúva. Foi preciso abrir três tumbas. Você ficou na cidade. O pai dos finados não perdia nenhum dos seus passos. Lá da margem, o velho Cavalcante perseguia você, com seu binóculo, enquanto você fazia os redemoinhos cantarem: ao amanhecer, você girava na água seu remo de pá larga e uma música rouquenha brotava da espuma. Sua cantoria das pompas da água era mais poderosa que o campanário da Igreja. A canoa dançava, os peixes acudiam e todos os homens despertavam. No mercado, você trocava linguados e robalos por mangas e abacaxis e azeite de palmeira. O velho andava atrás, arrastando o reumatismo, espiando seus passos. E quando você estendia-se na rede, espiava os seus sonhos. O velho não comia e nem dormia. Dessangrado pelos ciúmes, turbilhão de mosquitos que o mordiam dia e noite, foi perdendo a carne e o fôlego. E quando não restou nele nada além de um punhado de ossos mudos, foi enterrado ao lado de seus filhos. Você não usava vestidos da Casa Paris, nem pulseiras, nem brincos, nem anéis, nem mesmo um prendedor em seu longo cabelo negro, sempre brilhante de banhos de cepa de bananeira. Mas cada vez que você passava perto, Escolástico, que era paralítico, dava um salto. E lá ia você navegando pelas ruas da cidade, invunerável ao pó e ao barro, e Escolátstico sentia que o destino o chamava aos berros e aos berros mandava-o entrar em seu corpo e ficar lá todos os dias do ano que tivesse de vida. - O que eu faço aqui, fora dela?- atormentava-se Escolástico, até que certa manhã, quando viu você passar, abandonou de um salto sua cadeira de rodas e correndo desapareceu, atropelado por uma bicicleta. Quando havia maré alta, o rio chegava ao peito de Fortunato: ele era capaz de afundar qualquer barco com um braço, e com dois o trazia de volta á tona. Insaciável devorador de peixes crus e mulheres frescas, aquele sansão alardeava: - Minha espada de cabo peludo só faz filhos machos. Quando ele ia dar o bote em você, foi aniquilado por um raio. O raio, que caiu de um céu sem nuvens, surpreendeu Fortunato com a espada tesa e os braços esticados, na beira da rede onde você dormia; mas você continuou dormindo serenamente, sem perceber nada, e de Fortunato não sobrou nada além de um tronquinho de carvão eriçado, de três pontas. Chamados pela sua fama de mulher muito mulher, que havia se espalhado por toda costa do Pacífico, chegaram á cidade um jornalista e um fotógrafo do porto de Buenaventura. Era noite de baile. Você estava girando no ar, no centro de uma roda de aplausos, os ombros quietos, as cadeiras num remelexo, os pés zunindo, pés ou asas de beija-flor, e em marés erguia-se a espuma das rendas sobre suas coxas escuras e radiantes. O jornalista chegou a murmurar: -Que sorte a minha, ter estado neste mundo, te-la visto. e essas foram suas últimas palavras. O fotógrafo enlouqueceu. Querendo prender a sua imagem de mulher alada, terra e céu, solo e sonho, ficou gago para sempre, e nunca mais parou de tremer. Fotografava estátuas, e elas se mexiam. O padre Jovino sentiu uma rajada de cheiro de mar e descobriu você nas vizinhanças. Jogou um punhado de terra para frente, pronunciou os esconjuros fazendo o sinal da cruz, e jogou outro punhado de terra para traz. Quando percebeu você vindo para a igreja, fechou a porta com cadeado e tranca de ferro e madeira. - Padre- você chamou. Ele retrocedeu, apavorado. No altar, abraçou-se a cruz. - Padre- você repetiu, grudada na porta. - Senhor, não me abandone!- implorava o sacerdote, transpirando mares, incendiado pelos fogos da perdição. Você ia se confessar. Foi embora. Foi chorando gotas de hortelã. No dia seguinte, o padre Jovino untou-se de barro bento e atirou-se no rio, na curva profunda, atado ao Cristo. Logo depois, tiraram os dois. O padre afogado e Jesus, que antes suava e sangrava e piscava os olhos, deixou de pestanejar, e já não jorrava água nem sangue, nem fazia milagres. As mulheres sempre haviam olhado para você de cara feia. Desde que você havia chegado á cidade, a chuva não chovia e os homens trabalhavam pouco e morriam muito. Alguem havis visto esporas nas suas sandálias e alguem havia visto você envolta numa nuvem de enxofre. Era público e notório que o rio fervia e fumegava onde você navegava, e os peixes seguiam você agitando freneticamente as barbatanas; e sabia-se que uma cobra visitava você todas as noites, deslizando até a sua rede, vinda da folha de palmeira do teto, e fazia o favor. A cidade inteira condenava você, bruxa desdenhosa, mais festeira que rezadeira, por causa das suas artes de encantamento e feitiçaria ou por causa da sua beleza imperdoável. E certa noite, você foi embora. Em sua canoa, de pé sobre as águas, você se desvaneceu na névoa. Ninguem viu. Só eu vi. Eu era menino, e você nem percebeu. Vejo você até hoje.

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