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terça-feira, 10 de novembro de 2009

O QUE È UM HAICAI

Haicai e Cia. Por Paulo Franchetti
O trabalho amador tem encanto. A ingenuidade e a pouca desconfiança em relação ao senso comum, mesmo que paguem o preço da inexatidão e da falta de originalidade, captam facilmente a boa vontade dos leitores menos informados. “Eu também posso fazer!” é a conclusão sedutora, que acaricia o voluntarismo e granjeia a solidariedade. Assim sucede com o volume intitulado “haicais”, recentemente publicado pela editora Companhia das Letras, na coleção Boa Companhia. Estão ali representados 24 poetas heterogêneos, autores de poemas de natureza muito diferente. A uni-los num todo significativo, apenas o fato de serem escritos em três linhas e a vontade do organizador do volume.
A seleção dos poemas desse livro foi feita por Rodolfo Witzig Guttilla. Seu currículo o qualifica como bem-sucedido executivo de uma empresa de cosméticos. Mas é também poeta, e publicou, de lavra própria, um livro que vale a pena, principalmente por conta de um cd com animações leves e delicadas que o acompanha. Já como organizador e estudioso de haicai, seu trabalho deixa a desejar, trazendo para primeiro plano a insuficiente formação intelectual para a tarefa que lhe foi proposta e a pouca familiaridade com o objeto de trabalho.
As muitas deficiências, evidentes para um especialista, talvez não cheguem a incomodar o cliente fiel da coleção, que, prisioneiro do marketing, vai comprar o livro na esperança de ali encontrar um conjunto de textos representativos, impressos em bom papel e vendidos a preço razoável. Esse leitor certamente reconhecerá a qualidade do livro: a simpatia. A simpatia não só é o critério de seleção dos contemporâneos, mas também dá o tom das pequenas notas hagiográficas que sucedem cada pequeno conjunto, trazendo os dados de cada autor e um julgamento sobre sua obra. Para o leitor iniciante, será um atrativo o ar de ação entre amigos que pauta o livro, bem como a informalidade juvenil da linguagem, que permite que os modernistas de 1922 sejam tratados como “a rapaziada”.
Numa segunda edição, porém, as falhas mais graves deveriam ser sanadas. Por exemplo, não é possível, num livro que traz uma apresentação histórica do haicai, afirmar que o significado da palavra haicai seja “poema de dezessete sílabas”. Primeiro porque a sílaba não é a base da métrica japonesa (e sim a duração do som) e segundo porque haicai quer dizer “não formal, não sério”. É uma designação qualificativa que indica o tom, e não a forma do verso ou da estrofe. Também não é razoável dizer que Shiki, o restaurador do haicai, se filie ao “‘espírito da época’, encarnado por Bashô e sua escola”: porque não há uma época comum entre Bashô (século XVII) e Shiki, que produziu no final do século XIX; e também porque, se quisermos usar essa expressão romântica, toda a ação de Shiki foi contra o “espírito da época” em que vivia, que era o período de ocidentalização acelerada do Japão. Também uma informação básica sobre Bashô está errada, e seria ocioso listar aqui todos os enganos ou dificuldades técnicas no uso dos termos japoneses e na descrição do que seja o haicai, presentes na introdução. Mas há absurdos de redação que podem ser corrigidos sem muito estudo nem muito esforço. Por exemplo, é preciso reescrever a frase “na onda do escrito de Lobato, mais precisamente em 18 de junho de 1908, aportará em Santos a fabulosa nau Kasato Maru, trazendo a bordo 781 imigrantes japoneses”.
A redação desastrada poderia fazer supor que um artigo de Monteiro Lobato sobre o haicai tivesse alguma relação causal com a chegada da nau “fabulosa” (!), ou, pior, que o criador do Jeca Tatu tivesse desencadeado sozinho a imigração japonesa para o Brasil. Lobato parece ser uma das afeições do autor, pois na p. 10 aprendemos que “o autor de O sítio do Picapau Amarelo exercerá grande influência sobre a geração de escritores e poetas que, em 1922, romperá com a sintaxe passadista e inaugurará o “modernismo” no país”. Que Guttilla não saiba qual foi o verdadeiro lugar de Lobato na história da literatura brasileira, admite-se. Mas não devia utilizar o nome do programa infantil da Rede Globo para denominar o livro, pois Lobato escreveu O picapau amarelo.
Nada direi do zen – esse malfadado zen que tem servido a tanta mistificação –, mas há duas observações outras que se impõem e que eu não poderia deixar de fazer aqui. A primeira diz respeito às presenças, e a segunda às ausências. Devido às óbvias carências de formação ou informação literária do organizador, vêm para dentro da antologia, apresentado ao leitor como haicai, praticamente qualquer conjunto de três linhas assinado por autor conhecido. Haicai resulta assim um nome vazio, ou um rótulo que cada um pode pôr no produto que quiser, e não uma denominação que se refira a uma forma ou a uma disposição do discurso. Usar a palavra assim é tão razoável quanto incluir alguns trechos de Os Lusíadas numa antologia de poemas satíricos ou de sonetos, ou denominar écloga ou romance à Vida Nova, de Dante. Por conta disso, esta antologia resulta tão consistente quanto seria uma de tankas que incluísse epigramas de Marcial.
Já quanto às ausências, é digno de nota que Guttilla não tenha dado abrigo na sua “boa companhia” a nenhum autor que não faça parte ou do mainstream da literatura contemporânea ou do museu do passado. Os primeiros lhe garantem a divulgação, os segundos a aparência de erudição. Mas não custava, já que refere Hidekazu Masuda Goga (cujo nome, aliás, grafa erradamente) como figura importante na história do haicai no Brasil, ter incluído algum haicai seu. Como não custava ter incluído alguns de Roberto Saito (Faíscas, 1986) ou de Edson Kenji Iura (http://www.kakinet.com/).
Haveria outros nomes a referir, já que não há um só poeta nikkey nessa antologia – o que deve ter alguma explicação que não alcanço. Mas quero referir apenas mais um: Teruko Oda, estudiosa, divulgadora e poeta de haicai. Sua exclusão é a inconsistência maior dessa antologia. Para qualquer pessoa familiarizada com o assunto, seu livro Natureza, berço do haicai (1996) é referência obrigatória. Pour cause, não é reconhecido por Guttilla, que sequer o refere. Teruko é poeta de primeira linha e publicou meia dúzia de livros de haicai por editora de larga difusão, um dos quais foi incorporado ao programa de leitura do governo paulista e outro ao do governo federal. Além disso, realiza oficinas de haicai e coordena um trabalho importante – do ponto de vista nacional e internacional – de promoção do haicai junto a crianças, pelo país afora. Teruko talvez tenha um defeito aos olhos do organizador: é modesta, discreta e dedicada inteiramente à sua arte e não badala na mídia – e não escreve nada que não seja haicai.
Mas não há dúvida de que sua obra seja notável, constituindo uma realização de alto nível do haicai no Brasil. É uma pena – e um atestado de falência da representatividade da antologia – que não haja menção ao trabalho de Teruko Oda nem um haicai sequer de sua autoria nesse livro destinado ao grande público. E nem é o caso de se cobrir com o manto singelo da ignorância, pois nos vários textos e artigos que eu mesmo enviei a Guttila, a seu pedido e como subsídio à sua aprendizagem do haicai, o nome dela ocupava um lugar central. Mas como se lê em certo ponto da sua introdução, “trata-se de uma escolha subordinada a valores éticos e estéticos do organizador”. Pois é.
Paulo Franchetti é professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor, entre outros livros, de Alguns Aspectos da Teoria da Poesia Concreta (1989), Nostalgia, Exílio e Melancolia – Leituras de Camilo Pessanha (2001) e Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007). E-mail: paulofranchetti@gmail.com

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