Seguidores

Arquivo do blog

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

UMA CRÔNICA SOBRE O POETA DA VILA

Centenário de Noel Rosa, o Poeta da Vila
Era um agito só desde os primeiros dias do ano de 1910. Em todos os cantos do mundo, as pessoas acreditavam que o fim do planeta estaria próximo. Medo, promessas, pânico, suicídios! No Rio de Janeiro não era diferente. O que amedrontava a todos eram os mitos a respeito do cometa Halley, que, diziam, destruiria a Terra pela emissão de gases fatais! Mesmo os especialistas dizendo que isso não significaria grande coisa para humanidade, muitos supersticiosos acreditavam que era o início do fim do mundo. Se, de um lado, a natureza suscitava sensações e aguçava a imaginação humana com a sua grandiosidade, de outro, alguns homens, aviltados pela pequenez de outros tantos, lutavam por questões bastante objetivas na capital do País. Salve João Cândido! Que liderou um protesto contra os castigos corporais aplicados aos marinheiros negros. A revolta estourou no dia 22 de novembro de 1910, e, ao final de quatro dias de protestos intensos, os castigos foram abolidos. O fato ficou conhecido como a “Revolta da Chibata”. Mas, a rebelião foi retomada na noite do dia 09 para o dia 10 de dezembro, porque vários dos combatentes sofreriam retaliações. Apesar dos tiros, chibatadas, choros e da importante luta travada pelos marinheiros, havia uma única preocupação na casa de Martha de Medeiros Rosa e de Manuel Garcia de Medeiros Rosa: o nascimento do primeiro filho do casal - Noel de Medeiros Rosa. No dia 11 de dezembro, pela manhã, quando a Revolta da Chibata já estava sufocada, veio ao mundo este grande poeta, o “Poeta da Vila”. Foi um parto difícil. O médico utiliza o fórceps. O instrumento fraturou o osso do rosto de Noel, deixando-o deformado para sempre. Cresceu com o defeito, e, à medida que se desenvolvia, a deformação se destacava. Noel era espevitado. Desde criança fazia suas traquinagens. A mãe tentou, incansavelmente, controlar o filho. Afinal, o menino tinha dificuldades para comer por causa do queixo torto, e isso a preocupava. Cobrou-lhe muito que estudasse. Porém, são inúmeras as histórias de Noel satirizando a escola, os amigos e os próprios professores. Era, definitivamente, um menino atrevido e indisciplinado. Martha ensinou seu filho a tocar bandolim, enquanto o seu pai, Manuel, apresentou-lhe o violão. A partir daí aprendeu muita coisa por si mesmo, num exercício autodidata. O menino cresceu e ficou íntimo das ruas e da noite. Aos poucos foi fazendo amizades, conhecendo boêmios e músicos. O primeiro grupo musical do qual fez parte foi o Bando Tangarás. Por meio deste apresentou-se publicamente, pela primeira vez, em 1929. Os músicos executavam um repertório variado, com toadas, emboladas, cocos, choros e valsas. Foi aí que Noel começou a compor suas primeiras músicas, dentro da proposta de trabalho do grupo. Mas Noel Rosa vivia no Rio de Janeiro e fatalmente o samba cruzaria o seu caminho. Ainda em 1929, o Tio Eduardo teve o privilégio de ouvir, em primeira mão, o samba Com Que Roupa. Noel argumentou que a música era sobre “O Brasil de Tanga”. Os versos diziam: “Pois esta vida não está sopa/ E eu pergunto: Com que roupa?/ Com que roupa que eu vou?/ Pro samba que você me convidou?” A frase engraçada era uma referência explícita às dificuldades econômicas enfrentadas pelo Brasil em decorrência da quebra da Bolsa de Nova Iorque. Uma elite falida e um povo sacrificado constituíam o cenário político que inspirou Noel a compor o seu primeiro samba. A partir daí, para nosso deleite, muitos foram os sambas de Noel que falaram do Brasil, do amor e da boemia. Muitas outras tantas canções geniais foram produzidas. Ao todo, 259. Vários amigos de Noel eram malandros, muitos deles contraventores procurados pela polícia, a exemplo de Ismael Silva. A malandragem era tema de seus sambas. Em 1933, o poeta ouve uma música composta por Wilson Baptista e interpretada por Sílvio Caldas, chamada Lenço no Pescoço. Uma exaltação à figura do “malandro”. A música de Wilson estimulou Noel a questionar a visão que se tinha do sambista, ao associá-lo à malandragem. Não se sabe muito bem se Noel tinha mesmo essa preocupação de mudar a imagem do sambista, ou se seu objetivo era provocar Wilson Baptista, com quem disputava algumas mulheres. Veio, então, a contra-ofensiva de Noel com a música Rapaz Folgado, na qual respondeu verso a verso para Wilson: “Malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar todo o valor do sambista”. Wilson retrucou. Compõe Mocinho da Vila: “Injusto é seu comentário / Falar de malandro quem é otário”. Para Noel a questão estava encerrada, mas o enorme sucesso de Feitiço da Vila reacenderia, pelo menos para Wilson, a disputa musical. Feitiço da Vila foi feita para Lela Casatle, uma moça de Vila Isabel que havia sido eleita Rainha da Primavera, em 1934. Em 1935, Wilson recomeçou a polêmica com a sua música Conversa Fiada. Este era um samba mais bem feito e de melodia relevante, o que exigiu de Noel a produção de uma obra-prima como resposta. O samba Palpite Infeliz - “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira/ Oswaldo e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também” - de 1935, foi um golpe de mestre. Rubem Braga conta, numa de suas crônicas antológicas, que visitou a quadra da Mangueira, na década de 1930, e foi testemunha do prestígio de Noel e do samba Palpite infeliz. “O preto Cartola fez cantar os sambas da escola. E o único samba „lá de baixo‟, o único samba não produzido na própria escola que ali se cantou foi Palpite Infeliz. O morro respeitando Noel (...). Só quem conhece uma escola de samba, com o seu imenso orgulho exclusivista, pode conceber o valor de uma homenagem como esta prestada a Noel” (Trecho tirado do Songbook produzido por Almir Chediak, editora Lumiar). Wilson então apelou para a feiúra de Noel, e compôs Frankestein da Vila e Terra de Cego de uma vez só. Noel ficou um pouco chateado com a truculência de Wilson, mas fingiu que não. Disse para Baptista que achou interessante a melodia, mas que deveria mudar a letra. Assim, ambos compuseram Deixa de Ser Convencida, que fala de amor e parceria, e de amor em parceria, já que Wilson andava se “enroscando” com Ceci, o grande amor da vida de Noel. Estava dada uma das maiores brigas musicais da história do Brasil. Se foi só por “birra” ou se de fato havia uma questão política em discussão, o malandro, fica a critério de cada um decidir. O fato é que a disputa direcionou uma estética da malandragem que atravessou o século XX. Com o trabalhismo getulista em alta, falar de malandragem e de vadiagem era uma subversão tremenda, já que a exaltação ao trabalho era a marca do Governo Getúlio Vargas. O samba Lenço No Pescoço, de 1933, era muito ousado. O Brasil estava mudando. Industrialização, migração do campo para a cidade e recuperação da crise econômica de 1929. Muitos viam a malandragem como uma forma de resistência. “Eu vejo quem trabalha andar no miserê”, dizia Wilson. A construção da figura do trabalhador como cidadão digno e respeitável, tão cara ao governo, era satirizada pelo malandro conquistador. E, vejam que curioso! Justo Noel é quem faz o discurso anti-malandragem em Rapaz Folgado. Ele que largou a faculdade de medicina pela vadiagem, que admirava os malandros seus amigos, Saturtino, Baiaco, Zé Pretinho, Germano, que por muitas vezes criticara o getulismo - como em Espera Mais Um Ano - e a burguesia da época. Isso só reforça a idéia de que Noel falava de um tipo de malandro específico, o tipo de Wilson Baptista, e não da malandragem. Mediante uma política populista e autoritária, o presidente golpista, líder da chamada “Revolução de 1930” permaneceu no poder até 1945 sem que houvessem eleições democráticas no País. No ano em que Noel morreu, 1937, mais uma vez o Brasil passava por um período de medo e de insegurança. Nem cometas, nem chibatas: instaurava-se o Estado Novo, nome copiado do regime fascista implantado por Salazar em Portugal. O grande poeta não viveu para ver o samba Bonde São Januário, (1940), de Wilson Baptista e Ataulfo Alves, ser censurado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), fundado em 1939. Diz-se que a letra original era: Quem trabalha não tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O Bonde São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu que não vou trabalhar. Mas, com a interferência do DIP, o samba foi gravado da seguinte forma: Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O Bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar. A irreverência de Wilson Baptista, com Lenço No Pescoço, foi varrida pelos censores do Estado Novo. Quem melhor captou o sentido da passagem de Noel pelo mundo foi Martinho da Vila. Este insiste na „Presença de Noel‟. É impressionante como um eterno jovem, já que morreu com 26 anos, pode ter tido tamanha relevância para a formação de identidades. As ligações com Noel são sempre muito afetivas e provocadoras. Ninguém passa por Noel impune. Lembro que eu não dava tanta importância para as rodas de samba que meu pai fazia, exceto quando este puxava Conversa de Botequim. Eu adorava! Até cheguei a telefonar para o 34-4333, que Noel fala na música. Naquele tempo, os números de telefone em Rio Claro não tinham nem o 5 e nem o outro 3 no início, ou seja, eram iniciados por 34. Então pensei: Noel estivera em Rio Claro? Lógico que não! Era uma grande besteira de criança, e o cidadão que atendeu ao telefone não entendeu nada! Outra que eu parava para ouvir, Gago Apaixonado, era genial. Depois a vida vai passando e as músicas vão engordando o sentido. “Quem acha, vive se perdendo”, pois “[...] sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia, dentro da melodia” e “[...] o samba é a corda e eu sou a caçamba”. E no amor? “Pra que mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir”. E na paixão? “Ser estrela é bem fácil/ Sair do Estácio é que é/ O X do Problema”. E na vida? “Amor lá no morro é amor pra chuchu”. E no Samba? “O samba, na realidade/ Não vem do morro/ E nem lá da cidade”. E por aí vai... Quando se vê, o samba já dominou, já está sambando a corrente sanguínea, e eu “não posso mudar minha massa de sangue”. A contaminação é total! Só nos resta cantar. No dia 4 de maio de 1937, “pouco antes das onze da noite, no mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte e seis anos, quatro meses e vinte e três dias, morre Noel Rosa”. Como um cometa, que passa rápido demais. E dois cometas vieram ao mundo no mesmo ano de 1910. Sobre Halley, criou-se a expectativa de que mudasse os rumos da história do mundo. Mas, pelo menos para nós, o agente transformador foi Noel de Medeiros Rosa. “Quando eu morrer/ Não quero choro, nem vela/ Quero uma fita amarela/ Gravada com o nome dela ... Sem choro, nem vela, mas com muito samba, cerveja e boemia, prestamos esta pequena homenagem ao Poeta da Vila.
Leonel de Arruda Jussara de Miranda José de Assis

Nenhum comentário:

Postar um comentário