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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

UM POEMA: "ESCRAVIZADOS POR AQUILO QUE NOS DIFERENCIA

Era um velho homem amargo e em grande parte de sua vida ele foi assim. Não se lembra quando foi que a vida o transformou nisso. Desde então, tem sido uma constante batalha. Ele sabia que não poderia vencer, mas seguiu lutando. Contra ele. Ele já era um velho homem cansado. E agora esse velho homem, amargo e cansado, se vê prostrado em frente a uma lápide. Sua lápide. Tentava imaginar o que nela escreveria. Passou-lhe pela cabeça as noites em que gritou com medo de que ninguém estivesse escutando. Escutavam, mas não ouviam. Dizem que temos uma boca, dois olhos e dois ouvidos para ouvirmos mais, vermos mais, falarmos menos. Mas ele tinha duas mãos. Por isso escrevia mais do que falava. Mas andava bloqueado para escrever. A lápide em sua frente em branco e em branco ela permanecia. Talvez o cansaço o bloqueou. Andava cansado. Fisicamente cansado. Moralmente estafado. Emocionalmente devastado. O peso do mundo nas costas é muito melhor quando sentido apenas filosoficamente e literariamente. Quando cai pro fisicamente, perde a graça. “Qual valor de uma única lágrima?”, ponderava ele, ao sentir a chuva que começava a cercá-lo. Imaginou que os deuses também estivessem chorando. Quanto peso as lágrimas conseguem levar cada vez que caem dos olhos que insistem em ver a realidade exposta tal como vísceras navalhadas? Ali estava ele, prestes a ter paz. E bloqueado. E cansado. E amargo. Acreditou que o cansaço pudesse ser da busca por um pouco de paz. Mas buscar paz é utópico demais. Buscar a paz é preparar-se para uma guerra constante. Seja a busca pela paz seja a busca pela felicidade. Felicidade é como mijar em banheiro público: se você quer usar, apenas tenha cuidado para não respingar essa porra no vizinho. E ele tinha as pernas respingadas de lama causada pela chuva que encharcava a terra que o cobriria em breve. Lá estava ele, um velho amargo e cansado e bloqueado e molhado. E sozinho. Ninguém compareceria à estréia de sua lápide e logo pensou em deixá-la assim, vazia. “Fique sem procurar as pessoas por um tempo e se assustará com a quantidade de falta que você não faz a elas”, sussurrou enquanto olhava para seu reflexo distorcido na poça de água acumulada pela chuva em cima de sua morada eterna. Tomou um carvão úmido de um braseiro ao lado, apagado pelas lágrima, ajoelhou-se com dificuldade e empunhou aquele toco preto molhado como quem entrega numa bandeja a alma queimada por chamas acesas por outros. E ali ele a entregou. Levantou-se num último fôlego e disse, ao passar por mim, que o assistia de longe: “São tempos enviados para testar você. Se há algo errado com o que vê, tome todas as dores para si. Auto-piedade não é boa companhia. Miséria, sim. Prepara-se para morrer cheio de arrependimentos e vazio de certezas. Acostuma-te ao fato de que nunca irá ver aquilo que você poderia ter sido. O que sentia não sentirá mais. O que sabia não saberá mais. Eu já não me importo mais.” Limpou a pigarro da garganta, deu-me seu chapéu e se afastou. Fui até sua lápide, mas não pude ler o que tinha ele havia escrito. A chuva lavou o carvão. Comecei a pensar no que escreveria na minha. Ajoelhado, botei o chapéu e sussurrei à poça que me refletia: “Esse velho maldito sou eu.” E o filho da puta ria ao me observar de longe. FELIPE VOIGT http://www.questaodeordem.blogspot.com/

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